Jornalismo e filosofia no filme "Hannah Arendt"

segunda-feira, 12 de agosto de 2013


O filme Hannah Arendt está em cartaz em alguns cinemas do Brasil e faz um recorte de um evento muito importante na vida da filósofa: sua participação no julgamento, em Jerusalém, do nazista alemão Adolf Eichmann, como jornalista da revista New Yorker, com o propósito de escrever um artigo com a cobertura do julgamento. 

Eu pretendia escrever algo sobre as ideias de Hannah expostas no filme, inclusive sobre o pensamento da própria Hannah ao final do julgamento, a conclusão a que chegara, etc, mas encontrei uma bela resenha do filme, que contém ainda embasamento filosófico, então, deixo-a aqui com vocês. Apenas gostaria de comentar aqui algo que me chamou a atenção na postura de Hannah, que, mesmo tendo recebido a função de jornalista, discorreu filosoficamente sobre os fatos do julgamento, sobre a conduta de Eichmann, sobre a postura da comunidade judia, e, ao final de tudo isso, deu origem a mais uma linha de estudo de seu pensamento, a qual chamou de  "banalidade do mal". O filme é muito interessante, mesmo para aqueles que não são muito fãs de filosofia [o que definitivamente NÃO é o meu caso ;)]

O texto é integralmente copiado da Revista Pittacos - a autora é a Maria Aparecida Abreu!

HANNAH ARENDT – A Banalidade do Mal : Pensamentos a partir do filme

É difícil não sair seduzido do filme Hannah Arendt de Margarethe von Trotta. O objeto do roteiro é uma parte da vida de sem dúvida um dos indivíduos mais extraordinários do século XX. Antes de ver o filme, estava preocupada com duas coisas: uma banal, a falta de semelhança física entre a atriz escolhida, Barbara Sukowa, e a autora biografada, além da dificuldade de transmitir a densidade facial e corporal de um ser em estado de pensamento sem recorrer a caricaturas; e outra mais importante, sobre como um filme relataria um dos momentos mais relevantes e brilhantes da vida e da obra de Arendt, que é a passagem de uma concepção de “mal radical” – adotada desde As Origens do Totalitarismo (1949), e de inspiração kantiana -  para a de “banalidade do mal”,  expressão cuja elaboração isolada provavelmente já daria a Arendt um lugar entre os grandes autores de seu século.

O filme é muito bem sucedido. A começar pelo recorte escolhido. O relato do julgamento de Adolf Eichmann (1961) é uma das partes mais instigantes da obra de Hannah Arendt e o evento, em si, muito bem apresentado com a alternância de imagens de documentário – o verdadeiro julgamento – e a ficção – a relatoria narrada – foram a escolha correta para manter até mesmo o espectador leigo atento aos detalhes. Além disso, a importância de personagens históricos que tiveram influência intelectual e pessoal na vida de Hannah – especialmente Mary McCarthy, Heinrich Blücher, Hans Jonas e Martin Heidegger, é sugerida de forma bastante fiel à realidade, pelo menos tal como relatam suas biografias.

Todo este recorte acertado permite que a sedução da inteligência e da coragem desta intelectual que deixou sua marca no pensamento político ocidental se realize sem grandes resistências. Estamos diante de alguém extraordinário, sem dúvida. E esse alguém é uma mulher, uma das poucas que figuram entre os grandes dos novecentos. Ao lado dela, provavelmente, Simone de Beauvoir.

Seduzidos, então, mergulhamos nos fatos que levaram a autora a abandonar uma interpretação de que um dos conceitos que ajudaria a compreender o totalitarismo seria o de “mal radical”, tal como sugerido nas Origens do Totalitarismo. De acordo com este conceito, a prática do mal por um indivíduo – tal como Kant já indicara – dependia de um desvio de sua vontade, incapaz de legislar de forma afinada com regras que valeriam para toda a humanidade – o imperativo categórico – e capaz de cometer qualquer atrocidade, desconsiderando inclusive o mais intuitivo dos mandamentos da vida social, o “não matarás”. Esta concepção de mal radical era o que parecia explicar o que estava por trás dos crimes contra a humanidade. Todos, e principalmente os judeus, acreditavam serem os nazistas monstros. Não por acaso – e o filme destaca isto precisamente – o acusado é exibido no julgamento em uma jaula de vidro.

Não. Não se tratava de um monstro. Não se tratava de um psicopata ou canibal que a qualquer momento poderia voar sobre alguém da plateia, ainda que esse alguém tivesse traços judeus. Hannah Arendt é certeira: ele nem mesmo era antissemita, muito menos um assassino sanguinário. Era apenas o mais fiel obediente às leis. O desvio que o acometia, portanto, era sua incapacidade de questionar a razoabilidade, a legitimidade, a justiça e a humanidade dessas leis. Arendt sentencia: seu problema, e de todos os outros burocratas nazistas, era a incapacidade de pensar. Sem a força corrosiva e desconstrutiva do pensamento, qualquer ação é possível, qualquer lei pode ser racionalmente justificada.

E agora desenvolvo uma ideia que, tenho a impressão, está na obra de Arendt, mas não no filme. A partir do momento que os crimes contra os judeus eram cometidos em razão da incapacidade de pensar de boa parte de seus agentes – não estão incluídos entre eles, claro, o führer e a alta cúpula nazista –, o sucesso da dominação pretendida com a estrutura burocrática montada pelo sistema totalitário estava garantida. Se o sistema necessitasse de muitos monstros, provavelmente não os encontraria. É justamente porque a Solução Final poderia ser colocada em prática por seres humanos comuns é que o sistema pôde adquirir as dimensões que teve. Daí a banalidade do mal abranger dois aspectos: o primeiro, bastante abordado no filme, é o da premissa de que os seres humanos são supérfluos. O outro, que acredito não ter sido muito bem explorado, é o de que é quando temos um sistema – e não seres humanos – estruturado para a prática do mal é que ele pode se espalhar e, se não contido, abranger toda a humanidade. Nesse sentido é que o mal banal é “superficial”, não é radical. E justamente por isso ele é muito mais perigoso, porque, aparentemente, sob a sua influência, as pessoas estão agindo de forma racional e, acima de tudo obediente.
Então, se Adolf Eichmann não era um monstro, o que era? Um burocrata, um ninguém, um palhaço, que era capaz de afirmar, de forma sincera, sem qualquer pejo ou embaraço, que suas ações nada tinham a ver com a morte dos judeus: eles morreriam, com ou sem ele.

A capacidade de Hannah Arendt sair de sua condição de judia e enxergar o que ninguém até ali tinha visto é admirável, ainda mais quando consideramos a reação, inclusive de amigos, que ela teve de enfrentar. Reação cuja melhor resposta dada pela autora foi: ela procurou compreender[1] o que estava ocorrendo e compreender não é perdoar. Em busca de compreender, Arendt sai de si e é capaz de pensar radicalmente.
Até aqui o brilhantismo de Arendt é inegável. No entanto, houve outro ponto polêmico de seu relato: o fato de ela ter questionado o comportamento de algumas lideranças judaicas durante o nazismo. Este questionamento soou para os leitores judeus como uma atribuição de corresponsabilidade pelos crimes nazistas. Em resposta a isso, ela sofreu a acusação de ter pouco amor pelo povo judeu, o que no filme foi, de forma comovente, expressada por um de seus melhores amigos, Kurt Blumenfeld, em seu leito de morte, em Jerusalém, à qual Arendt respondeu que nunca havia amado povo algum, nem mesmo o judeu. Ela amava seus amigos. Esse era o amor de que era capaz. Hannah Arendt está completamente coerente com seu pensamento. Seus atos refletem bastante suas ideias. Para ela, amor é um sentimento da esfera privada, reservada às relações mantidas nessa esfera.

Hans Jonas, de forma mais cruel, mesmo após a aula pública dada por Arendt com o objetivo de explicar o que queria dizer com a “banalidade do mal”, atribui o erro de julgamento de Arendt à sua arrogância, falta de conhecimento dos assuntos do povo judeu e à sua fidelidade intelectual a Heidegger.

Minha interpretação é a de que talvez os judeus estivessem parcialmente corretos nessa segunda cobrança. Hannah Arendt procurou tanto compreender Eichmann, e teve uma impressionante lucidez nessa tarefa, que talvez não tenha compreendido a atuação dos judeus. Não porque não amasse seu povo, talvez sim por sua fidelidade a Heidegger, embora não naquilo que provavelmente Hans Jonas estava sugerindo – antissemitismo e descompromisso com a realidade por um excessivo compromisso com o pensamento -, mas pelo seu desprezo, manifestado várias vezes ao longo de sua obra, pela sociologia. Munida do instrumental já então erigido por Weber em suas formulações sobre a sociologia da dominação, seria provável que ela percebesse que os judeus – não sei se como povo, ou se como grupo –, durante a dominação nazista, agiram como os dominados agem quando buscam a sobrevivência: aderem à lógica e às regras do dominador, muitas vezes internalizando-as. Pode-se não admirar alguém que age de acordo com os ditames da sobrevivência. No entanto, da mesma forma, não se pode exigir desse alguém conduta diferente. Mas, ao que parece, isso não foi reivindicado da autora naquele momento, só décadas mais tarde, ao longo da recepção de sua obra.

[N.A. 1] A palavra em inglês é understanding, que nas legendas do filme foi traduzida por entender. Mas como entender remete a atividades da razão e, na obra de Hannah Arendt, isso adquire outro sentido, vou adotar aqui a tradução consagrada – compreender.

Um comentário:

Rovênia disse...

Que análise excelente. Fiquei com vontade de ler mais sobre ela, assistir ao filme. Por isso, junto-me aos pensadores que não gostam de nada que limite o pensamento crítico, como a religião. Ter fé é uma coisa, seguir os dogmas de uma religião é outra bem diferente. Lidar com a cegueira é muito difícil... Parabéns pela postagem!

 
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